segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Literatura Infantil: Os Três Porquinhos sob a ótica da psicanálise

Por Mônica Perny


O gosto de contar é idêntico ao de escrever – e os primeiros narradores são os antepassados anônimos de todos os escritores. O gosto de ouvir é como o gosto de ler.
Cecília Meirelles


1 - Apresentação
  .
Este recorte versa sobre as relações que a Psicanálise estabelece com a Arte e em especial com a Literatura e tem como objetivo refletir os aspectos da teoria psicanalítica acerca da Literatura Infantil, tomando como base as seguintes questões: Qual o valor terapêutico dos contos para a criança em análise? Qual a função dos contos para o desenvolvimento psíquico do sujeito?
A pesquisa bibliográfica realizada à luz da psicanálise tem como referência a obra de Sigmund Freud, Bruno Bettelheim e de outros autores que de forma direta ou indireta tratam do tema.


2 - Introdução

Quando uma criança nasce inicia o seu ciclo de aprendizagem. Desde os primeiros dias ela aprende que para satisfazer suas necessidades necessita comunicar-se: primeiro com choro e gritos, depois com gestos e palavras e, por fim, com ações muitas vezes inconscientes.
A capacidade de simbolizar nasce com o ser humano e estrutura- se a partir de dois movimentos: conhecer o objeto e perder o objeto. Desde o nascimento a criança passa por momentos de perdas importantes: as castrações (umbilical, do desmame, a fálica). Estes processos vivenciados até os cinco anos são importantes para a formação semiótica e permitem a criança simbolizar o mundo.
Simbolizar é, portanto, sentir a perda. É olhar e substituir o objeto perdido por outro.
Os contos de fadas são histórias difundidas desde a Antiguidade. Sua origem é incerta, mas sempre presente na cultura oral em todos os continentes, que retrata um mundo fantástico, de sonhos, fadas, princesas e magias.
As histórias infantis contadas e recontadas no decorrer dos tempos, através da metáfora são capazes de apresentar os dramas e conflitos principais por meio do simbólico, assim,
Para regular os problemas psicológicos do crescimento (superar as decepções narcísicas, os dilemas edipianos, as rivalidades fraternas; ser capaz de renunciar às dependências da infância, afirmar sua personalidade, tomar consciência de seu próprio valor e de suas obrigações morais), a criança tem necessidade de compreender o que se passa em seu ser consciente, para fazer face igualmente ao que se passa em seu inconsciente (BETTELHEIM, 1980, p. 16).


3 - Literatura e Psicanálise

Na obra freudiana encontram-se muitos exemplos da interconexão entre Psicanálise e a Arte, mais especificamente a Literatura. Freud utiliza peças dramáticas como “Édipo-Rei”, de Sófocles e “Hamlet”, de Shakespeare, para articular questões pertinentes ao sujeito e à cultura. Em “O Estranho”, Freud (1919) utiliza “O Homem da Areia”, de Hoffmann, para falar do sentimento estranho, mas tão familiar do sujeito, e que lhe aparece como estranho, como um duplo. Freud, no texto “O tema dos três escrínios” (1913) faz uma interpretação de um tema muito comum nos contos de fadas, que é o da escolha entre três mulheres, que versa sobre uma escolha do destino.
O psicanalista Jacques Lacan também usou referências da literatura para explicar algumas questões que ele coloca, em sua releitura de Freud. No seminário sobre “A carta roubada”, conto traduzido por Baudelaire (Lacan, 1998) ele discorre a sua teorização acerca do significante, do significado que desliza sob a cadeia significante, das posições em que se colocam os sujeitos a partir da posse ou não da carta, do saber possuir, achar que possui e saber que o outro possui ou não, no percurso sob o significante que é a carta.
Para o psicanalista Bruno Bettelheim,

O prazer que experimentamos quando nos permitimos ser suscetíveis a um conto de fadas, o encantamento que sentimos não vêm do significado psicológico de um conto (embora isto contribua para tal) mas de suas qualidades literárias – o próprio conto como uma obra de arte. O conto de fadas não poderia ter seu impacto psicológico sobre a criança se não fosse antes de tudo uma obra de arte (BETTELHEIM, 1980, p. 20).


4 - A criança e a Psicanálise

Sigmund Freud revolucionou o pensamento a respeito da criança em vigor na época, com suas teorias sobre a dinâmica do inconsciente, a sexualidade infantil e o complexo de Édipo.
No texto “Escritores criativos e devaneios” (1908), Freud já discutia a relação entre as fantasias da criação poética e o brincar da criança.

Acaso não poderíamos dizer que, ao brincar, toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? (FREUD, 1908, p.135).

Assim, a criação literária, para Freud seria semelhante ao brincar infantil por sua na tentativa de reajustar o mundo. A criança, em seu brincar, se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo de fantasia que é levado a sério, “no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade.” (1908, p.135).
De acordo com Freud, o que preserva a relação entre o brincar infantil e a criação poética é a linguagem.

5 - O inconsciente e a linguagem

O sujeito da psicanálise é o sujeito do inconsciente enquanto manifestação única e singular.
O principal axioma de Lacan (1985, p.27), é:” o Inconsciente é estruturado como linguagem”, assim sendo, somos estruturados a partir da fala e da linguagem. Disso decorre que estamos sujeitos ao efeito do inconsciente, uma vez inseridos no mundo da linguagem, lidamos todo o tempo com palavras, com imagens e com símbolos que se articulam continuamente.
Sigmund Freud introduziu a técnica da associação livre na clinica psicanalítica em substituição ao método catártico. A técnica da livre associação tem como objetivo trazer para a mente inconsciente às memórias ou os pensamentos reprimidos, causadores do sintoma do paciente. Antes de utilizar a associação livre como técnica psicanalítica, Freud já havia lido a respeito do processo.
O autor, Ludwig Börne chamou a atenção de Freud, quando este ainda era adolescente. Segundo Freud, Börne, “fora primeiro autor em cujos escritos penetrara profundamente” (FREUD, 1920, p. 279). Ludwig Börne em 1823 escreveu “A Arte de Tornar-se um Escritor Original em Três Dias”. É um breve ensaio de apenas quatro páginas e meia, com o qual Freud veio a ter contato muitos anos depois. Ele termina o ensaio com o seguinte parágrafo:

E aqui temos a aplicação prática que foi prometida. Pegue algumas folhas de papel e por três dias a fio anote, sem falsidade ou hipocrisia, tudo o que lhe vier a cabeça. Escreva o que pensa de si mesmo, de sua mulher, da Guerra Turca, de Goethe, do julgamento de Fonk, do Juízo Final, de seus superiores e, quando os três dias houverem passados, ficará espantadíssimo pelos novos e inauditos pensamentos que teve. Esta é a arte de tornar-se um escritor original em três dias (BORNE, 1923 apud FREUD, 1920, p. 279).

6 - Contos: contar e recontar 

Na leitura das obras de Freud observar-se que, a ideia de uma tendência à repetição sofre modificações teóricas no seu percurso, tornando-se um conceito de grande importância para a Psicanálise. Apesar de, o termo compulsão ter sido documentado numa carta ao médico alemão Wilheim Fliess em 1894, o conceito de compulsão à repetição aparece pela primeira vez na obra freudiana em Recordar, repetir e elaborar escrita em 1914 (ROUDINESCO & PLON, 1998).
O psicanalista francês Jacques Lacan (1963-1964) em O seminário, livro, 11 a considera como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Desde os primeiros textos de Freud a ideia de uma tendência à repetição (Widerholung) liga-se à de compulsão (Zwang). A repetição funde-se ao funcionamento psíquico inconsciente.
Tanto na criança como no adulto, se o inconsciente é recalcado e nega-lhe passagem à consciência, a mente consciente do sujeito sofrerá intervenções de derivados desses elementos inconscientes, que tentarão a todo custo se tornar conscientes. Os contos de fadas escondem as questões inconscientes. Nesse sentido, o conto de fadas permite que a criança entre em contato com estes conteúdos que nem sempre são tocados por outras atividades.
Os contos de fadas apresentam “uma variação sobre o mesmo tema: o ser humano se buscando e buscando o sentido de sua vida” (BONAVENTURE, 2003, p. 19). Portanto os contos não relatam apenas histórias imaginárias, mas algo que se refere a nós mesmos. Assim, a criança é capaz de reconhecer qual história é significativa para sua necessidade momentânea e também é capaz de perceber onde a história lhe fornece uma forma de poder enfrentar e resolver um conflito interno. De acordo com Bettelheim,

Só escutando repetidamente um conto de fadas e sendo dado tempo e oportunidade para demorar-se nele, uma criança é capaz de aproveitar integralmente o que a estória tem a lhe oferecer com respeito à compreensão de si mesma e de sua experiência de mundo. Só então as associações livres da criança com a estória fornecem-lhe o significado mais pessoal e assim ajudam-na a lidar com problemas que a oprimem. (1980, p. 74).

Por esta razão a criança pede para ouvir a mesma história diversas vezes. A criança volta ao mesmo conto para ampliar seu significado ou substitui-lo por novos. Caso a história não seja repetida ou não for dado um tempo para a criança poder apreendê-la, algo ficará perdido.
Isto explica porque um conto pode ser favorito em um momento da infância, e depois de um tempo não ser tão apreciado. Quando a criança passa a querer ouvir outro conto, significa que ela já acomodou a mensagem trazida por ele e que este já cumpriu a sua função de ensinar.


7 - Contos de fadas, sonhos e fantasias

Na teoria freudiana o sonho visa realizar um desejo. A partir do momento em que alguns desejos não são satisfeitos o sujeito começa a fantasiar e a desejar.
Sob a ótica da psicanálise o sonho e a realidade têm uma estrutura idêntica:

O ser humano sonha continuamente, esteja dormindo ou acordado, sempre movido pela fantasia inconsciente que não apenas representa para ele a sua realidade como lhe fornece meios para se relacionar com seu mundo real (JORGE, 2010, p.223)

No universo infantil, as fantasias revelam-se através dos sonhos, das brincadeiras, da música, da arte, bem como através dos contos de fadas.
 A obra freudiana mostra que os contos de fadas são similares aos sonhos e fantasias com uma linguagem simbólica idêntica. Segundo Bettelheim (1980, p.46) há diferenças bem significativas entre os sonhos e os contos de fadas.

Sonhos:
  a satisfação dos desejos é disfarçada;
   são resultado de pressões internas, que não encontram alivio, de problemas que bloqueiam uma pessoa, para as quais ela não conhece nenhuma solução e para as quais os sonhos não encontram nenhuma;
 não é possível controlar o que se passa em nossos sonhos, embora a censura interna influencie o que podemos sonhar, este controle ocorre no nível inconsciente.

Contos de fadas:
  a satisfação dos desejos é expressa abertamente
 há uma projeção do alívio de todas as pressões internas que não encontram alívio e não só oferece formas de resolver os problemas, mas promete uma solução “feliz” para ele.
 em grande parte resulta do conteúdo comum consciente e inconsciente tendo sido moldado pela mente consciente, não de uma pessoa especial, mas do consenso de várias a respeito do que consideram problemas humanos universais, e o que aceitam como soluções desejáveis.

Segundo Bettelheim (1980) não se deve analisar os sonhos das crianças em análise, pois: são muito simples; contém um conteúdo inconsciente que permanece praticamente não moldado pelo ego e ainda, porque as funções mentais mais elevadas mal entram na produção de seu sonho.
Assim a utilização dos contos são mais eficientes, uma vez que eles têm como função expor pela criança as suas fantasias que na maioria das vezes causam insegurança e medo. A criança ao falar dos personagens, pode falar abertamente de seus medos, desejos e fantasias, pois não está falando de si, não é a sua fala, mas a dos personagens.


8 – Os Três Porquinhos sob a ótica da psicanalise

“Os Três Porquinhos” é um conto da tradição inglesa. As primeiras edições do conto datam do século XVIII, mas, acredita-se que a história seja muito mais antiga. As fábulas, que são também contos populares, são transmitidas de geração a geração. Segundo Samuel Johnson, (apud BETTELHEIM, 1980, p. 54) "Uma fábula parece ser, no seu estado genuíno, uma narrativa na qual, seres irracionais, e algumas vezes inanimados, com a finalidade de dar instrução moral, simulam agir e falar com interesses e paixões humanas". Outra característica das fábulas é que elas sempre afirmam explicitamente uma verdade moral não há significado oculto, nada é deixado à nossa imaginação.
Na versão mais antiga dessa história, os dois porquinhos mais novos são devorados, mas nas versões contemporâneas todos se salvam.
A história “Os Três Porquinhos” possui a simplicidade que as crianças bem pequenas apreciam, sem muitos personagens, os bons de um lado e um malvado de outro. A trama, apesar de simples, toca a fundo as crianças.
A história trata de diversas questões. Uma delas é a do “princípio do prazer” versus o “princípio da realidade”. O menor dos porquinhos construiu sua casa com menos cuidado, com um pouco de palha. Ele queria construir sua casa rapidamente, ele desejava obter prazer imediato. O segundo porquinho, mostrou algum amadurecimento e construiu sua casa mais firme que a do irmão anterior, utilizou madeiras, mas também demonstrou imprudência, e não foi capaz de dominar completamente seu princípio de prazer. Somente o terceiro porquinho, demonstrou maturidade e ser regido pelo princípio da realidade. Ele sabe adiar o seu desejo de satisfação e despende um tempo maior para construir uma casa mais resistente mais sólida possível, e construiu com tijolos, decisão que salvará sua vida e de seus irmãos. Segundo Bettelheim (1980), As casas construídas pelos três porquinhos são simbólicas do progresso do homem na história: de uma casa de palha desajeitada para uma de madeira, finalmente para uma de tijolos.
De acordo com Freud, o princípio da realidade caracteriza-se pelo adiamento da gratificação. Agir de acordo como princípio da realidade consiste em dar conta das exigências do mundo real e das consequências dos próprios atos. Segundo Bettelheim, o conto aponta para,
...possibilidades de progresso do princípio do prazer para o princípio da realidade, o que, afinal de contas, não é senão uma modificação do primeiro. A estória dos três porquinhos sugere uma transformação na qual muito do prazer é retido, porque agora a satisfação é buscada com verdadeiro respeito pelas exigências da realidade (1980, p. 54).
A diferença de disponibilidade para o trabalho de cada porquinho representa de maneira simples para o entendimento da criança a questão do planejamento aliado a um trabalho árduo para obtermos a vitória. A cada investida do lobo, a casa é derrubada e eles correm para se abrigar na casa do irmão mais velho. A estória fala dos estágios de crescimento distintos, mostra os benefícios do desenvolvimento da inteligência e importância da maturidade, pois elas sabem que um dia terão de sair de casa e protegerem-se sozinhas. Portanto, vence aquele que melhor souber prever e se proteger, e essa fábula,
...dá conta da necessidade de proteção da criança diante de perigos que ela ainda não decodifica bem, mas desconfia que deve aprender a evitar. “Os Três Porquinhos” possui também agregado um aspecto de fábula moral, mostrando que a perseverança vence, que o mundo não é só brincar, que o trabalho árduo é recompensador e que crescer é saber cuidar de si (CORSO e CORSO, 2006, p.57) .
Outro ponto importante demonstrado no conto é que o porquinho não se satisfaz em fugir e procede como a criança que pede a repetição do conto, no incansável prazer de ter medo. Graças ao lobo, a criança poderá simbolizar seus medos.
O porquinho também pode ser pensado como sendo três em um. mostram o progresso da personalidade dominada pelo id para a personalidade influenciada pelo superego, mas essencialmente controlada pelo ego (BETTELHEIM, 1980, p. 53).
A criança, que através da estória foi convidada a identificar-se com um de seus protagonistas, não só recebe esperança, mas também lhe é dito que através do desenvolvimento de sua inteligência ela pode sair-se vitoriosa mesmo sobre um oponente muito mais forte.
Essa fábula convida a criança a identificar-se com um de seus protagonistas, e faz com que ela perceba que que através do desenvolvimento de sua inteligência, diante de uma situação difícil ela pode sair-se vencedora mesmo sobre um oponente muito mais forte ego.
A criança pequena tem um primitivo senso de justiça, e acredita que o lobo, é um animal malvado, porque deseja destruir. A maldade do lobo é alguma coisa que a criança reconhece dentro de si seu desejo de devorar e a consequência: sua ansiedade. Assim ela fantasia sofrer possivelmente, o mesmo destino. Assim o lobo é uma externalização, Logo a uma projeção da maldade da criança na personificação de um objeto fóbico que lhe ajude a circular no mundo externo.

9 – Considerações finais

A literatura infantil é grande valia na clinica psicanalítica com crianças. Ouvir / ler contos de fadas pode ser considerada uma atividade simbólica e terapêutica em análise com crianças, pois servem como instrumentos mediadores entre o inconsciente e o consciente que favorecem os processos de autoconhecimento e de transformação pessoal.


10 – Referências

BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

BONAVENTURE, J. O que conta o conto? São Paulo: Paulus, 2003.

CORSO, D. L.; CORSO, M. Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed Editora, 2006

FREUD, S. (1908). Escritores criativos e devaneios Vol. IX. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

JORGE, M.A.C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. vol.2: a clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

____. (1909) Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. Vol. X. In:
Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Imago, 2006.

____. (1913) O tema dos três escrínios. Vol. XII. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

____. (1919) O estranho. Vol. XIV. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

____. Uma nota sobre a pré-história da técnica de análise (1920) In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.

————. O seminário sobre a carta roubada. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.

MADAME BOVARY NO DIVÃ



Por Mônica Perny


Apresentação

O texto tem como objetivo um breve estudo da psicanálise articulada ao amor e a literatura para melhor compreensão do comportamento da personagem Emma do romance realista francês “Madame Bovary” de Gustave Flaubert.


Introdução

Em 1856, após cinco anos de trabalho, o escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880) publicou seu romance mais importante: Madame Bovary, no qual criticou os valores românticos e burgueses da época. O livro gerou grande polêmica e seu autor foi processado sob a acusação de “ofensa à moral pública e religiosa”.  
Sua obra tornou-se a mais representativa do Realismo francês e exerceu grande influência sobre escritores brasileiros, entre eles de Aluísio Azevedo e Machado de Assis.
O romance tem como pano de fundo uma sociedade provinciana conservadora e moralista. A personagem central é Emma Bovary, uma mulher romântica e insatisfeita com a vida provinciana; mulher egocêntrica e ambiciosa que acreditava que só seria feliz numa vida de luxo e poder. Era nos livros que Emma buscava fugir da realidade. Influenciada pelas leituras românticas e sua permanente insatisfação com o mundo real faz com que Emma desse um trágico fim a sua angústia.

Emma Bovary

Emma era uma jovem camponesa instruída e educada. Moça sonhadora queria ter e ser aquilo que estava longe da sua realidade. Esta obsessão fantasiosa de Emma era alimentada pelas leituras de romances que versavam sobre o amor.   Era nos livros que Emma buscava fugir da realidade. Através das leituras e de seus devaneios românticos, repletos de aventuras e paixões, a moça construiu seu referencial de vida idealizado.
A Emma foi praticamente oferecida a Charles Bovary, por seu pai, um lavrador que passava por dificuldades financeiras. Emma acreditava que Charles seria capaz de lhe dar os prazeres da paixão. Assim, Emma casou-se com Charles não só porque acreditava estar apaixonada por ele, mas também porque acreditava que o casamento lhe daria a oportunidade de ascender socialmente. Via no casamento uma vida de glamour.  Porém casamento não lhe trouxe a felicidade apresentada nos livros que lera.
Charles Bovary era o oposto da protagonista. Médico provinciano, pacato e desprovido das grandes ambições, casou-se com Emma por amor.
A decepção da recém-casada Emma Bovary começou logo na lua-de-mel. Emma logo percebeu que a como esposa, assim como o marido não seriam capazes de satisfazer seus anseios. Mesmo casada, seu cotidiano era entediante e rotineiro e seu marido Charles, não era um amante sedutor e galante tal como os amantes descritos nas páginas dos romances que lia. Começou aí a sua angústia.
 Via seu marido como um homem medíocre, fracassado e frio, passando a desprezá-lo. Nem mesmo a maternidade fora capaz de lhe dar felicidade e alegria.
 Esposa adúltera buscou extravasar sua angústia nos relacionamentos extraconjugais frustrados e no consumo desmedido de futilidades, que a fez contrair dívidas impagáveis levando sua família à ruína.
            Rasgado o véu da fantasia, Mme. Bovary não foi capaz de lidar com a realidade quotidiana. Diante da concretude nada romântica da vida, onde não havia mais nada para fantasiar, num ato de desespero cometeu o suicídio.


Considerações finais

Emma tinha o hábito de ler romances de amor. Moça ingênua considerava sua vida no campo monótona e chata, buscava refúgio nos romances para preencher o vazio de suas experiências pessoais. Estes foram capazes fazer com que sua imaginação criasse as sensações antes das experiências.  Este foi o ponto de partida para a trajetória de deslocamento de um ser (real) para outro (imaginário).
Este processo inaugura o fenômeno do Bovarismo, que na prática faz em trazer para a realidade hábitos imaginados somente para sentir-se a tal imaginada.
Assim, Emma construiu sua vida construída num terreno frágil de bases ilusórias. Enredou-se num romantismo imaginário, alimentado pelas leituras, que a afastando-a cada vez mais da sua realidade e se aproximar de suas fantasias.     Ousada, desafiou o seu tempo para encontrar a felicidade e o sentimento de completude.  Entregou-se de corpo e alma ao hedonismo para preencher a sua falta, o seu vazio existencial. Mas o que Emma não sabia, era que estaremos sempre na falta tentando preencher com mais e mais objetos o nosso vazio.
Madame Bovary apresenta uma estrutura histérica com sintomas clássicos, descritos pela psicanálise. Conclui-se, portanto que, todas as ações de Madame Bovary (suas investidas extraconjugais e extrapolação do seu poder de compra) foram guiados pelo mesmo e único signo: a paixão.


Referências

FERREIRA, Nadiá Paulo. O amor na Literatura e na Psicanálise. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2008. Disponível em:

PALMIERI, Gisele Maria Nascimento. O fetiche de Madame Bovary. Disponível em:
<http://www.palpitar.com.br>. Acesso em: 29 set.11.

SANTOS, Goiamérico Felício Carneiro. Madame Bovary: a paixão, o consumo. Disponível em:

SCOTTI, Sérgio. A histeria em Freud e Flaubert. Disponível em:


_____. Psicanálise e literatura, o objeto e o estilo em Flaubert e Joyce. Disponível em: <http://www.omarrare.uerj.br/numero11/pdfs/sergio.pdf>. Acesso em: 20 set. 2011.





A HISTERIA DE ANGÚSTIA NA INFÂNCIA

A HISTERIA DE ANGÚSTIA NA INFÂNCIA  
Autor: Mônica Perny

 Introdução 
 Este ensaio busca fazer um recorte referente a fobia infantil e a formação do sintoma fóbico, tendo como objetivo compreender a relação da fobia articulado com a curiosidade infantil.  O referencial teórico tem como base obra freudiana “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”, publicada em 1909, conhecida como o caso do “Pequeno Hans”. Sigmund Freud acreditava na possibilidade de "se observar em crianças, em primeira mão e em todo o frescor da vida, os impulsos e desejos sexuais que tão laboriosamente desenterramos nos adultos dentre seus próprios escombros" (FREUD, 1909, p.16).  

O primeiro caso da psicanálise freudiana com criança 
"O pequeno Hans", é considerado o primeiro caso da psicanálise freudiana com criança.  Apesar Freud não ter tratado o menino diretamente, ele registra a importância de sua observação: 
Quando um médico trata de um neurótico adulto pela psicanálise, o processo que ele realiza de pôr a descoberto as formações psíquicas, camada por camada, capacita-o, afinal, a construir determinadas hipóteses quanto à sexualidade infantil do paciente; e é nos componentes dessa última que ele acredita haver descoberto as forças motivadoras de todos os sintomas neuróticos da vida posterior (FREUD, 1909, p.15). 
Portanto é correto afirmar que, as fobias podem surgir na infância e se não tratadas adequadamente, poderão persistir e tornar-se problemática na idade adulta. Freud já havia formulado estas hipóteses numa obra anterior – Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905 d). 
Ao publicar seus estudos sobre a sexualidade infantil, Freud ousou e escandalizou a sociedade vitoriana, ao discorrer teoricamente sobre aspectos inconscientes presentes na infância nunca antes pensados, tais como: excitação sexual, estimulação genital infantil e tendo como consequência o surgimento das angústias, medos e conflitos no sujeito.  

A análise do pequeno Hans 
O pequeno Hans se chamava Herbert Graf. Nasceu em 1903 e morreu 1973. Hans foi a primeira criança a ser atendida através do método psicanalítico freudiano, tornando-se como paradigma para o desenvolvimento da psicanálise com crianças, especialmente desenvolvidas por Anna Freud e Melanie Klein. A análise do pequeno Hans iniciou quando o menino tinha três anos de idade, porém, os primeiros relatórios enviados pelo pai do menino, Max Graf, a Freud sobre o desenvolvimento do filho datam de um período pouco anterior.  Portanto Freud foi o analista propriamente dito do o menino, mas participou como supervisor do caso. Max Graf mostrou interesse em anotar suas observações sobre a vida sexual do filho a partir do seu entusiasmo pelos relatos de sua esposa, Olga König, que havia realizado análise com Freud, e também por ter sido incentivado em registrar estas observações durante sua participação assídua nas Reuniões da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras. Para Freud estes registros tornavam-se fundamentais para comprovar suas teorias sobre a sexualidade infantil que até então obtidas a partir do tratamento em adultos Após a análise dos relatórios enviados pelo pai de Hans, Freud selecionava apenas os que abordavam as questões relativas à curiosidade sexual do filho. Freud centrou a análise do menino em torno do complexo de Édipo e de castração, tendo como objetivo desenvolver sua teoria sobre a angústia de castração. Segundo Freud, “Hans era realmente um pequeno Édipo que queria ter seu pai “fora do caminho”, queria livrar-se dele, para que pudesse ficar sozinho com sua linda mãe e dormir com ela” (FREUD, 1909, p. 103).
Quando tinha três anos, Hans começou a demonstrar um interesse obsessivo por seu pênis, chamado por ele de "faz-pipi” e pelo órgão sexual da mãe, que ele também chamava de "faz- pipi”, portanto o menino apresentava um interesse libidinal ligado à masturbação e curiosidade sexual. Posteriormente ele passou a ter interesse também pelo "faz-pipi” de outros seres animados. Sua mãe por diversas vezes lhe ameaçara cortar o “faz-pipi” caso o tocasse e segundo Freud estes eventos permitiram o menino a vivenciar o  Complexo de Castração. Quando Hans tinha três anos e meio, questionava sobre o nascimento de sua irmã, Hanna. Segundo Barros (1988) as práticas masturbatórias e o nascimento da irmã leva ao rompimento na relação dual entre Hans e sua mãe.  

A histeria de angústia infantil 
Os primeiros indícios de fobia são relatados pelo pai de Hans, quando o menino passa a não querer sair de casa por sentir medo de cavalos e temer ser mordido por eles. A primeira manifestação da fobia de Hans aconteceu num ele passeio com a babá quando começou a chorar, pedindo para retornar para casa. Segundo a observação de Freud este episódio não apresentou subsídios clínicos para que Hans fosse diagnosticado com agorafobia. O termo fobia é derivado do grego phobos. Na psicanálise a fobia não é considerada uma neurose, mas sim um sintoma Segundo Freud Hans apresentava um distúrbio psiconeurótico dos mais comuns - a histeria de angustia. Uma de suas características é poder surgir na fase infantil e por isto considerada como uma neurose da infância por excelência.  Na opinião de Freud, de todos os distúrbios psiconeuróticos, a histeria de angústia, é a que “menos dependente de uma disposição constitucional especial e é consequentemente, o mais facilmente adquirido em qualquer época da vida” (FREUD, 1909, p. 107).
A histeria de angústia é uma neurose do tipo histérico, na qual o sujeito converte uma angústia num terror sem motivo, diante de um objeto, um ser vivo ou uma situação que não apresentam em si nenhum perigo real. Na psicanálise freudiana, a sexualidade situa-se no centro do sintoma fóbico da histeria de angústia.  A fobia é um sintoma muito comum na infância, especialmente quando a criança vivencia um sentimento antagônico para uma única pessoa. No caso de Hans para o pai: ele ama o pai que o protege, mas também o odeia por este lhe impor limitações aos seus irrefreáveis desejos. Diante deste conflito de sentimentos o menino tentou eliminar um destes sentimentos "ambivalentes", optando pelos mais hostis conferindo um destino específico para estes: o deslocamento. Na análise de Freud, Hans apresentava fobia por cavalos. Freud associou os cavalos ao pai de Hans, conforme texto abaixo: 
[...] revelei-lhe então que ele tinha medo de seu pai exatamente porque gostava muito de sua mãe. Disse-lhe da possibilidade de ele achar que seu pai estava aborrecido com ele por esse motivo; contudo isso não era verdade, seu pai gostava dele apesar de tudo, e ele podia falar abertamente com ele, sobre qualquer coisa, sem sentir medo. Continuei, dizendo que bem antes de ele nascer eu já sabia que ia chegar um pequeno Hans que iria gostar tanto de sua mãe que, por causa disso, não deixaria de sentir medo de seu pai; e também contei isso a seu pai (Freud, 1909, p. 45).  

 Considerações finais 
 Hans não teve sucesso na eliminação de seus sentimentos hostis pelo pai, o que resultou numa fobia, que nada mais é do que o deslocamento estratégico dos sentimentos de uma situação original para uma outra remota: o medo na situação original (o medo do pai) desloca-se para outro “objeto” do qual Hans é capaz de se defender ficando fisicamente distante: o objeto fóbico (cavalo). Isto explica o fato do menino apresentar um medo desproporcional e injustificado por cavalos.
Hans desenvolveu algumas fantasias fóbicas como mecanismo de defesa para atenuar sua angústia de castração, ou seja, a fantasia ocupa o lugar do falo perdido. O menino ao se deparar com a privação materna elege um elemento imaginário ligado a sua fobia.  Na análise de Freud a fobia de cavalos de Hans estava relacionada ao medo inconsciente de ser castrado pelo pai devido do amor que nutria pela mãe. A manifestação do complexo de Édipo promoveu a cura do pequeno infante e foi de inestimável valia para Freud teorizar essa sua experiência prática. Portanto qualquer fobia é manifestação de uma angústia profunda, muitas vezes sem relação aparente com o objeto fóbico.  

Referências
BARROS, Romildo R. do Rêgo. Alguns comentários sobre a solução fóbica, in: A ordem do sexual. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 33. 
FREUD, S. (1909) Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. Vol. X. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.