O ser humano ocupa a
mais alta posição da escala evolutiva no reino animal, e ainda assim, o bebê
humano nasce numa situação de total dependência de cuidados para sobreviver.
Desde o nascimento o bebê necessita de proteção e cuidados, entre eles
alimentação e higiene, os quais serão os responsáveis pelas primeiras
experiências de prazer e desprazer do indivíduo.
A criança, ao nascer não sobrevive sozinha. É
necessária a presença de outra pessoa para garantir sua sobrevivência. Quem
garante esta sobrevivência é a mãe ou um cuidador que cumpre a função materna.
Geralmente a mãe desempenha sua função em conjunto com o pai da criança ou
outra pessoa que assuma a função paterna. Somente partir desta relação com os
pais, a criança poderá se constituir como sujeito. O sujeito da psicanálise é o
sujeito do inconsciente enquanto manifestação única e singular. Logo, a intervenção do agente da função materna é,
portanto, a condição de possibilidade de seu vir-a-ser.
O principal axioma
de Lacan é: ”o Inconsciente é estruturado
como linguagem”, portanto, somos estruturados a partir da fala e da
linguagem. Para o psicanalista “as
palavras fundadoras, que envolvem o sujeito, são tudo aquilo que o constituiu,
seus pais, seus vizinhos, toda a estrutura da comunidade, que o constituiu não somente
como símbolo, mas no seu ser”. Disso decorre que estamos sujeitos ao efeito
do inconsciente, uma vez inseridos no mundo da linguagem, lidamos todo o tempo
com palavras, com imagens e com símbolos que se articulam continuamente.
A teoria
psicanalítica considera o autismo como resultado da falha no processo de
constituição do sujeito, devido a falhas na relação da criança com seus pais,
ou seja, no exercício da função materna e na função paterna. Essas falhas podem
ocorrer quando a mãe deixa de dar uma resposta a uma demanda do bebê. Referente a função paterna,
a falha ocorre quando não há
investimento de um terceiro indivíduo que possa contribuir na
constituição psíquica da criança.
Breve histórico sobre o autismo
O termo autismo foi
criado por Eugen Bleuler em 1907, para designar o ensimesmamento psicótico do
sujeito em seu mundo interno e a ausência de qualquer contato com o exterior,
que pode chegar inclusive ao mutismo.
A síndrome do
autismo foi descrita pela primeira vez em 1943, num artigo escrito
originalmente em inglês “Distúrbios Autístico do Contato Afetivo” pelo
psiquiatra Leo Kanner. Kanner descreveu um grupo de onze casos clínicos de
crianças apresentavam inabilidade para se relacionarem com outras pessoas desde
o início da vida, falha na comunicação e dificuldades para lidar com quaisquer
mudanças. Estas crianças aprestavam em comum as seguintes características: um
autismo extremo, a obsessividade, as estereotipias e a ecolalia. Segundo
Kanner, o autismo era causado por pais altamente intelectualizados, pessoas
emocionalmente frias e com pouco interesse nas relações humanas da criança.
Depois de postular
uma origem psicogênica para o autismo e afastar a questão do aspecto dos
distúrbios precoces, vários psicanalistas, nos Estados Unidos, França e
Inglaterra, começaram a desenvolver as ideias kleinianas e annafreudianas para
a análise de crianças autista.
Autismo Infantil
O autismo é um
distúrbio do desenvolvimento humano. Designa-se de “autista" a pessoa
afetada pelo autismo e de “autístico” tudo aquilo que caracteriza o autismo.
A incidência do
autismo é mais frequente no sexo masculino. Os sinais e sintomas da síndrome do
autismo podem manifestar-se desde os primeiros dias de vida até os três anos de
idade.
A psicanálise inclui
a síndrome do autismo no campo das psicoses e desde Kanner a questão dos pais
toma uma posição central para a compreensão da etiologia do autismo. Para Jerusalinsky
aparecimento tanto de traços como de quadros autistas está intimamente
vinculado ao desequilíbrio do encontro do agente materno com a criança. Sendo
que este desequilíbrio depende, por um lado, do status psíquico deste agente e, por outro lado, das condições
constitucionais da criança para se apropriar dos registros imaginário/simbólico
que entram no jogo do vínculo.
Características comportamentais das crianças autistas
As principais
características do autismo são: desvios dos padrões qualitativos na
comunicação, socialização, iniciativa, imaginação e criatividade. As
estereotipias no autismo são variadas e se processam em determinadas horas do
dia, e podem agravar-se em momentos de ansiedade.
O autista apresenta uma inabilidade inata de
estabelecer contato afetivo e interpessoal com o mundo à sua volta. Ausência de
sorriso social. Busca pouco ou nenhum contato visual e agem como se estivesse
surdo. Observa-se claramente isto ao observar uma criança autista brincando.
Suas brincadeiras demonstram falta de criatividade ou imaginação. Seus jogos,
ou seu brincar é mecânico, normalmente com movimentos repetitivos, como, rolar
um canudo entre os dedos ou acender apagar a luz. Não demonstra interesse em
brincar com os outros, de partilhar um brinquedo e prefere o isolamento. É
frequente o uso de objetos autisticos (ou confusionais), termo usado por Tustin
para descrever brinquedos duros (como trens ou carrinhos) ou macios (bonecos de
pelúcia) que a criança carrega constantemente consigo. Outro hábito frequente
da criança autista é ficar horas assistindo os mesmos filmes ou desenhos
animados e usando o controle remoto para repetir as partes que querem ver pretendem pular.
Também é comum, ver
crianças autistas abraçando e beijando as pessoas. Esta atitude, que aparenta
uma aproximação afetiva, não tem intenção de troca, mas sim um comportamento
repetitivo, pois a criança é incapaz fazer diferenciações de pessoas, lugares e
ocasiões. E ainda, as mudanças de rotina, como por exemplo, a dos móveis da
casa, ou até mesmo de um brinquedo, é capaz de perturbar algumas crianças
autistas.
A fala ou linguagem nos autista podem estar ausentes
(mutismo). Podem apresentar ritmo imaturo da fala, quando surge, é arrítimica, atonal,
sem inflexões e não transmite emoções. Articulam palavras repetidas (ecolalia)
sem associação com o significado e geralmente associada ao uso inadequado do pronome pessoal. Têm dificuldade em expressar suas necessidades, gesticulam e apontam no lugar de palavras.
Costumam ter apego exagerado a um objeto em particular
que guardam o tempo todo e reagem quando lhes for retirado.
Resistem à mudança de rotina.
As vezes se isolam e
falam baixinho ou riem sem motivo
Podem manter posições
bizarras maneirismos e estereotipias, principalmente de mãos e dedos e ainda, fixarem
um objeto ficando de cócoras ou impedirem a passagem por uma porta, somente
liberando-a após tocar de uma determina maneira os alisares.
Nas formas mais
graves podem apresentar comportamento destrutivo e se automutilarem, pois
possuem uma aparente insensibilidade a dor, ou extrema aflição sem razão
aparente, tornando-se agressivas ao que lhe vem pela frente sejam pessoas,
animais, ou coisas.
Autismo na clínica psicanalítica
Sigmund
Freud revolucionou o pensamento a respeito da criança em vigor na época, com
suas teorias sobre a dinâmica do inconsciente, a sexualidade infantil e o
complexo de Édipo. Freud acreditou no uso a técnica psicanalítica com crianças
ao publicar, em 1909, a análise de uma criança de cinco anos, o caso do
"Pequeno Hans”.
Na
prática clínica é comum os pais relatarem um fato marcante que pode ter
ocorrido antes, depois ou durante o nascimento da criança, que repercutiu na
vida familiar e, consequentemente na vida do bebê. Trata-se, portanto de um
acontecimento que repercutiu na vida psíquica dos pais fazendo ressurgir a
problemática da castração. O nascimento de um filho autista é capaz de criar
uma ferida narcísica que sangra sem parar produzindo uma imensa dor psíquica
nos pais. Sendo assim é necessário escutar e acompanhar os pais durante todo o
processo psicanalítico de seus filhos.
A função materna
e a função paterna
No
texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” de 1905, Freud discorre da
importância das primeiras relações mãe-bebê e de como ela se origina dos
sentimentos dessa mãe com a sua própria sexualidade.
A
criança existe psiquicamente na mãe muito antes de nascer. Ao nascer o bebê
traz consigo uma potencialidade renarcisante, à medida que a criança nasça
organicamente saudável e perfeita. O
nascimento de um filho é capaz de devolver o sentimento de potência ao casal
parental.
A
concepção de um filho é capaz de promover na mulher uma sensação de completude,
dando inclusive a sensação de que nada lhe falta, até o marido e pai do seu
filho lhe parece dispensável Para o homem a satisfação de se reconhecer no
rosto do filho, perpetuar a família e reafirmar sua potencia fálica. Assim, o
agente materno investe imaginaria mente o infans como o que preenche o que lhe
falta e por isso o deseja.
Os
lacanianos referem-se à função materna, num sentido descritivo, como do lugar
que ocupa o agente de intermediação do simbólico para a criança – o Outro. Este
Outro é seu semelhante e é o representante do campo simbólico. Sendo assim, na
relação da criança com o Outro materno, há uma falha radical na simbolização,
que esse Outro se torna real, não simbolizado. De acordo com Jerusalinsky o bebê humano, requer
a presença real de um agente que o receba num espaço virtual (o lugar de sua
falta), espaço no qual esse infans se
espelha (se imaginariza). Esse espaço se cava no agente materno na medida em
que existe nele uma referência ao simbólico. Para ser mais preciso, é
necessário que esse agente seja capturado pela castração simbólica, inscrito
metaforicamente no Nome-do-Pai. Ou seja, Não verdadeiramente agente materno sem
referência à Função do Pai, porque este agente se constitui como tal só no seu
nome. Só assim o filho é objeto de desejo, e só assim, então, a mãe se inscreve
(escreve?) no corpo dele as marcas do simbólico. Esta é por excelência, a
função materna.
Para o pediatra e
psicanalista D.W. Winnicott, o “bom funcionamento”
do laço com a mãe é que permitiria à criança organizar o seu eu.
Winnicott faz referência a três funções maternas e que
são exercidas simultaneamente: a
apresentação do objeto; o holding e o handling.
A função materna da
apresentação do objeto, é a
amamentação do seio ou da mamadeira. A mãe ao oferecer o seio ou mamadeira em
horários regulares, dará ao bebê a ilusão de que ele mesmo criou o objeto do
qual sente a necessidade.
Na função da mãe
no holding ou sustentação, a mãe
protege o bebê dos perigos fisicos diante a ignorancia da criança à realidade
externa. Winnicott enfatiza a maneira da mãe segurar a criança, a principio
fisicamente, mas também psiquicamente. A repetição deste gesto fará com que o
eu nascente do bebê encontre pontos de referencia, necessários para sua
integração no tempo e no espaço.
A terceira função
materna através do holdling, corresponde
a manipulação do corpo do bebê durante os cuidados necessários à manutenção do bem-estar do bebê, e que
favorece a experiência da sua vida psíquica e seu corpo.
Winnicott desenvolveu estudos com criança refugiadas e
privadas da presença materna durante a guerra, levando-o a considerar a importância
da dependência psiquica e biológica da criança em relação à mãe .
Para Winnicott a
mãe capaz de adaptar-se perfeitamente as necessidades do filho, durante seus
primeiros meses de vida, é chamada de “mãe
suficientemente boa”, ou seja, a mãe capaz de tornar possível a criança
“desenvolver uma visa psiquica e fisica fundamentada em suas tendências inatas.
Já a “mãe
insuficientemente boa”, segundo Winnicott pode corresponder a uma mãe real
ou a uma situação, ou seja “não a uma
pessoa, mas à ausencia de alguem cujo apego à criança seja simplesmente comum”.
No caso da mãe real, esta pode ser incapaz, estar ausente ou ser muito
intrusiva. Assim, a mãe pode ser incapaz de se identificar com as necessidades
do filho, ou seja, em vez de responder a demanda do bebê ela os substitui pelos
seus.
Considerações finais
A concepção de um filho autista é uma possibilidade
nunca imaginada por um casal. A chegada de uma criança com autismo pode trazer
aos pais sentimentos de culpa, frustração,
impotência, rejeição, entre outros. Muitos pais de autistam chegam a viver na
negação.
Durante a pesquisa
observou-se que entre muitos
autores consideram o autismo como tendo etiologia orgânica e outros apontam a
psicogênese, e ainda que muitos defendem uma multideterminação.
O diagnóstico deve ser feito por um profissional
qualificado, tendo como base o comportamento, anamnese e observação clínica da
criança. Geralmente o bebê autista é tido
como a criança “boazinha” que raramente
chora ou faz birra, e que prefere ficar no berço a aninhar-se no colo. Assim, um dos problemas enfrentados no
tratamento psicanalítico do autismo infantil refere-se ao encaminhamento tardio
da criança, que geralmete chega quando os sintomas já estão cristalizados.
Até o momento não existe um tratamento específico para
o autismo, mas, de acordo com o grau de comprometimento e da intensidade, a
criança autista será capaz desenvolver comunicação verbal, ser alfabetizada, a integração social, entre outras habilidades.
Conclui-se portanto que a intervenção psicanalítica
precoce é o melhor procedimento para
propiciar o desenvolvimento favorável do sujeito autista.
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